Titulação quilombola: entre velhos desafios e conquistas, o racismo segue vencendo
- Danilo Serejo
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Por Danilo Serejo
Em estudo publicado em 2023 a ONG Terra de Direitos apontou que se o ritmo atual persistir, o Brasil levará cerca de 2.180 anos para titular todos territórios com processos abertos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Os motivos apresentados para essa letargia institucional são os mais variados possíveis. Mas não se pode atribuir essa paralização à de ausência de leis e regulamentos legais que disciplinem a questão. Os motivos para isso orbitam no plano político, e se refletem na Administração Pública Federal, ente responsável pela execução e implementação das políticas públicas para esse público. Falta também vontade política!
Afinal de contas, entre os povos e comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas são os que possuem leis mais consolidadas sobre o processo de regularização e titulação de suas áreas, a exemplo do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e do Decreto 4887/2003 que tratam da propriedade coletiva quilombola.
Então, quais fatores impedem os processos de titulação de avançarem? Quais são os seus maiores desafios e gargalos? Os problemas para sua efetivação são antigos e estão ligados a interesses de setores conservadores e ruralistas da sociedade, e da lógica racista e colonial que ainda orientam a atuação da gestão pública e o parlamento brasileiro no atendimento a essa demanda. Basta que se olhe o baixo desempenho orçamentário ao longo dos últimos anos.

Em 2010 publiquei, em coautoria com o Advogado Roberto Rainha, o texto “A titulação dos territórios quilombolas: uma breve leitura dos oito anos de governo Lula” no Relatório Brasil Direitos Humanos 2010, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, analisamos as marchas e contramarchas que marcaram os oito anos iniciais do governo do Partido dos Trabalhadores em relação a agenda quilombola, especialmente, as titulações dos territórios.
Na oportunidade verificou-se que da promessa inicial de titular 57 territórios, apenas 11 foram efetivamente tituladas. Reflexo, à época, de um cenário de duros ataques midiáticos ao Decreto 4.887 associados à reação sistemática de setores ruralistas no Congresso Nacional e Supremos Tribunal Federal**.
O que na época provocou, por parte da Advocacia Geral da União, um atropelado processo troca-troca das Instruções Normativas do Incra que regulamenta o “procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003”.
Nos anos que se seguiram essa marcha lenta continuou a determinar os processos de titulação. Dados também cotejados pela Terra de Direitos revelaram que o governo Dilma I (2011-2014) emitiu apenas 14 títulos; entre os anos 2015 e 2018 (marcado pelo golpe), os governos de Dilma II/Temer titularam apenas 10 territórios, ao passo que, o governo Bolsonaro emitiu apenas 06 títulos.
Ainda segundo os dados da Terra de Direitos, até 2024, o:
“Brasil possui 3.031 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares - etapa inicial, de autorreconhecimento pela comunidade. As etapas seguintes, de atribuição da autarquia federal, apresentam números bem menores. Dos 1.857 processos abertos no Incra apenas 324 territórios quilombolas foram identificados e delimitados (publicação do RTID), 217 foram reconhecidos por decreto, 90 declarados de interesse social (publicação de portaria) e apenas 57 foram titulados (parcial ou total)”.
Ou seja, em que pese os avanços promovidos pelo atual governo Lula, como o Decreto nº 11.786, de 20 de novembro de 2023, que institui a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola e o seu Comitê Gestor, o cenário, longe de ser o ideal, e os avanços não tem se convertido em segurança jurídica e acesso à terra, tampouco, acelerado o processo de titulação das comunidades quilombolas.
No ritmo atual, no processo de titulação, o Brasil deverá levar mais de 2.000 anos para titular os mais de 7.000 territórios quilombolas do país.
O que reflete a lógica racista de abandono institucional histórica do Estado brasileiro em relação às comunidades quilombolas, com as quais o Estado historicamente elegeu o abandono como critério de gestão e o racismo como mediação.
Falta vontade política na efetivação do direito à terra das comunidades quilombolas. Uma vontade política que é formada e informada pelo racismo institucional.
O quadro de abandono, mesmo com o advento da Constituição Federal de 1988, além de expor nossas comunidades à violência de toda sorte, gera insegurança jurídica quanto ao acesso à políticas públicas e outros direitos sociais, como também, rouba o direito ao futuro; rouba o direito que essas comunidades tem de planejar suas vidas e assumir o controle e protagonismo sobre seus destinos.
Em outras palavras, negar o pleno direito à propriedade quilombola significa reproduzir a lógica racista da subalternização. Nessa perspectiva, o que se pode esperar do futuro é o passado. O passado colonial em que nossas comunidades eram subjugadas e desumanizadas, desprovidas da condição de sujeitas de direitos e de qualquer cidadania.
É uma contradição visceral para o governo Lula que se coloca mundialmente como grande liderança da agenda sobre mudanças climáticas, mas, se esquece de fazer o dever de casa. Titular territórios quilombolas e investi-los de autoridade ativa e decisiva na agenda climática é passo fundamental para se fazer justiça climática. Sem isso, tudo é jardinagem!
*Danilo Serejo é Quilombola de Alcântara/MA, cientista político e pesquisador.
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**CF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239/04 proposta pelo partido Democratas em face do Decreto nº 4887/2003.





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